Minhas experiências ciclísticas iniciaram bem cedo, eu ainda me lembro quando tirei minhas rodinhas de apoio na areia de São Vicente/SP, pensando que o meu pai ainda estava me segurando pedalei com segurança por um momento, mas quando virei, dando pela sua ausência, fui ao chão…
Mas o tempo passou e conheci Hevandro Gonsalves no encontro nacional de Comunidades Alternativas em 1999 e combinamos de pedalar até o Rio de Janeiro, onde seria realizado o próximo encontro, alguns meses depois a Equipe cresceu com a chegada de Claudia Ponestick, e proporcionalmente cresceu a distância, fomos convidados a participar do Festival de Cultura Alternativa em Arembepe/BA, com pouca experiência, nem um patrocínio e muita garra, partimos em direção à Bahia, foram 45 dias entre o céu e o asfalto, tudo ocorreu da melhor forma possível, e concluindo nossa viagem de 2.700km de forma transcendental, com uma grandiosa chegada na Aldeia Hippie de Arembepe, em janeiro de 2000 assistindo a semana de Shows na primeira fila e aquele eclipse total da lua cheia que ocorreu no início de 2000. Após o final do festival ficamos na aldeia mais uma semana, e no dia que iria partir tive duas surpresas, tinha sido aprovado no vestibular da EMBAP, e a bicicleta que meu irmão me emprestou para fazer essa viagem tinha sido roubada, não tendo dinheiro nem bicicleta não restou mais nada a fazer, foi o meu avô que me acolheu por 2 semanas em Ponta Verde, bairro beira mar daquela cidade fantástica que é Maceió/AL.
No ano de 2000, trabalhei e comprei uma bike, a vontade de partir começou a crescer. Elaborei um projeto e levei nas empresas tentando viabilizar um patrocínio para uma aventura, que foi batizada de Meridiano 50, uma viagem ousada pelo interior do Brasil cortando-o longitudinalmente, partindo do Trópico de Capricórnio alcançando em 50 dias a Linha do Equador em Macapá/AP rodando 3.500km em minha primeira “Aventura Solo”.
Confesso que a partida foi difícil, existe uma certa pressão para você ir, mas ao mesmo tempo é difícil partir sozinho. Na manhã de 29 de dezembro de 2000, sem acordar ninguém iniciei minha viagem, carregava comigo um alforje que tinha uns 30 quilos de equipamento: panela, roupas, material de pintura, remendo de pneu, algumas ferramentas, uma barraca e um saco de dormir, tendo um apoio da Ticcolor que englobava o gasto em material fotográfico: 14 filmes mais a revelação garantida, também contando com um patrocínio de 50 reais que o meu colega da Faculdade Edson “tako” me patrocinou, e a certeza que tudo o iria dar certo.
Fiz o primeiro dia deixando Curitiba para trás, pedalando empolgado demais até Ponta Grossa 150 km, aprendi que a minha média ideal era de 100km diários, acordava as 6:00 da manhã, mais tarde tomava um café em alguma padaria. Nos estados do Norte com 50 centavos é possível se esbanjar, cada pão de queijo… língua de sogra, rosca assada ou frita é tudo 10 centavos o café era sempre gratuito, concluía dois terços da viagem pela manhã, meio-dia eu parava em algum posto de Gasolina ou Restaurante, já procurando uma boa sombra para o “sagrado cochilo”, deixava minha bicicleta na porta do estabelecimento descansava por uns 15 minutos, antes de entrar e explicar minha situação para o gerente:
– Bom Dia, eu estou vindo de Curitiba de bicicleta e quero chegar até o Norte, eu tenho pouco dinheiro, e gostaria de saber se o Sr. pode me dar um almoço.
Na maioria das vezes eu ouvia:
– Senta aí, sirva-se à vontade, vai querer água, suco ou refrigerante.
Não podia exagerar na quantidade, indo á forra, sofreria mais tarde o estômago trabalhando ao mesmo tempo que minhas pernas, então dava um belo cochilo de duas horas marcas no relógio, e quando o sol e a comida estivesse baixado pegava a estrada, até o pôr do sol e o início da noite, as vezes por mais 20 quilômetros na escuridão para alcançar algum lugar seguro para pousar, e nunca acampando na beira da estrada.
Geralmente dormia nos Postos de gasolina, onde tinha uma total infra-estrutura, banho, tanque para lavar a roupa e lanchonete, onde eu pedia uma marmita ou fazia um mingau de aveia com bolachas. As vezes eu chegava numa cidade e ficava dando um “tempo para sorte”, esperava algo acontecer, na maioria das vezes conhecia alguém que me convidava para pousar em sua casa conhecendo a família, conquistando a amizade e no dia seguinte quando estávamos muito à vontade chegava a hora de partir.
Na viagem o meu peso variou de 64 kilos no início para 56 kilos no meio do percurso e se estabelecendo posteriormente em 61 kilos. Em nem um momento da viagem passei fome, em trajetos de 70 km sem civilização eu carregava alguns alimentos de fácil preparo como arroz integral e aveia, também carregava bolacha recheada (juro que é o meu único vício), queijo, goiabada e doce de leite; fui sendo presenteado pela viagem principalmente no Triângulo Mineiro. Havia algumas cidades onde se produziam frutas em grandes quantidades, mas de um só tipo, parecia que era a conjunção ideal de elementos na terra e clima que faziam as frutas serem de tamanha qualidade, nesses lugares frutas não faltavam. Existia também muita variedade, muitas frutas regionais como o buriti, jaca, cajá, acerola, seriguela e as várias espécies de manga. Os temperos e acompanhamentos que enriqueciam o feijão eram outra maravilha.
Cinqüenta e três dias entre o céu e o asfalto, rodovias tão compridas que levavam ao céu, cortavam montanhas, atravessavam rios caudalosos e algumas se assemelhavam a um grande rally. Muita vida havia nas estradas, revoadas de tucanos, araras-azuis, periquitos e anús; Falcões e grandes aves de rapina sempre voavam em casal; Tatus, lobos, lagartos, cavalos, eram freqüentemente atropelados, mas quando se avistava de longe um grande animal peludo na estrada, batia uma tristeza, ao se aproximar, se tinha certeza que era mesmo um tamanduá – bandeira, do tamanho da minha bicicleta, com garras maiores que meu dedo, tinham hábitos noturnos e eram lentos demais, havia também os tamanduás mirins que cheguei a contar 4 por quilômetro em Tocantins. Uma vez quando pelava numa estrada que cortava uma mata fechada, encontrei um mico fêmea, com um ferimento leve, ele estava no meio da estrada desacordado, então trouxe-a para a margem e dei um pouco de água, logo sua pupila se dilatou e ela correu para a mata.
Os Federais, como são chamados os andarilhos, estão por todo o lugar, e formam um verdadeiro povo caminhante, que cruzam o Brasil com a sua Boroca (bolsa) ou seu papo de ema (espécie de saco com alça), levando sempre sua cascuda (vasilha) para acondicionar a comida que ganham. Eles tem um vocabulário próprio, e dizem que tem propriedades, família mas escolheram este jeito de viver, conseguem dinheiro pedindo para os caminhoneiros e igrejas, costumam beber e vivem à girar. Cavaleiros montados sobre rodas, são como lendas vivas, sempre se ouve estórias de aventureiros que foram vistos ou passaram por lugares, mesmo á dois ou mais anos atrás, ainda são lembrados. Pessoas se identificam com estes seres que procuram a liberdade e a imensidão como os garimpeiros. Elas também sempre contam estórias de suas viagens, mostrando o quanto são aventureiras. As vezes eu era presenteado com: livros, bonés, chapéus, dinheiro, anéis, colares, incenso, pomadas e camisetas como se quisessem viajar comigo, estando presente em toda a minha jornada.
Recebi muito apoio no caminho, nos jornais eu era entrevistado e podia explicar minha viagem direito, nas rádios locais me entrevistavam ao vivo, nas prefeituras conseguiam almoço e as vezes pouso, quando eu era entrevistado pelas Tvs regionais as pessoas vinham apertar a minha mão e tiravam foto junto comigo, aí eu tinha meus minutos de fama.
Um dia enquanto eu estava tomando um farto desjejum numa manhã em um hotel 3 estrelas (fiquei em hotel umas 4 vezes, que foram bancados por pessoas da mídia) eu pensei: …O que eu estava fazendo era algo parecido com um trabalho de risco, passava o dia todo transpondo horizontes em compridos tapetes negros, alguns trechos em estado totalmente precário, disputando lugar com máquinas movidas a diesel bufando fumaça preta e pesando mais de 60 toneladas com 10 rodas que se soltam pelo caminho, exigia uma total atenção qualquer imprudência seria fatal. Mas o trabalho arriscado tinha a sua compensação. Onde eu chega-se era rodeado por curiosos que lançavam perguntas uma encima da outra: se éra uma promessa, uma competição, quantos pneus já gastei, quantos já furou, quantos quilômetros já andei, se eu me comunico com minha família, o que minha mãe disse disto e se eu não tinha medo.
Daí eu dizia:
– Medo do que minha senhora?
– Há, medo de tanta coisa que a gente vê na Televisão.
– As coisas que aparecem na TV são na maioria noticias ruins. Existe muita gente boa nesse mundo, uma pequena parte é que não presta.
Eu ia levando a esperança para essa gente, mostrando que as coisas não estão tão ruins como parece, e que a coragem para fazer isso está dentro de cada um, não precisa viajar de bicicleta para ser corajoso.
Algo que marcou essa viagem foi a diversidade, as culturas que são riquíssimas, a vegetação que foi se transformando, e com isso os seres que habitavam as matas foram mudando no decorrer da viagem. Entendendo que a grande função do cicloturismo é proporcionar a transição entre culturas, numa velocidade em que se possa compreender. Eu fiz uma viagem para fora do meu horizonte, mas ao mesmo tempo mergulhei no meu interior, descobrindo a minha relação como o planeta, o tamanho da minha casa, o meu relacionamento com as pessoas que são como irmãos, e o meu limite físico e a força do meu instinto de sobrevivência, não fiquei sozinho no meio das pessoas, mas senti a solidão na estrada, as quando fazia dezenas de quilômetros sozinho mesmo. E tive momentos de tremenda alegria e um sentimento raro de amplidão misturado com liberdade. Descobri que isso me faz muito bem…
Autor: Fernando Rosenbaum.
E-mail: primobiker@ig.com.br
Cidade/UF: Curitiba – PR
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muito bom o relato