Com as mãos espalmadas para o céu esperamos os primeiros raios do sol do dia 21 de junho, ou seja, a cerimônia do Solstício de Inverno que comemora o ano novo Aymará chamado de Pachacutja. O dia mais curto do ano é aguardado por uma multidão de mais de 10 mil pessoas, todas elas reunidas no sítio arqueológico de Tiwanaku (construído a 1800 a.c.), 72 quilômetros de La Paz – Bolívia, tombado pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade.
O ritual é mais uma prova da riquíssima cultura do povo do altiplano andino, uma tradição que perdura há 510 anos. Sete “sacerdotes” representando várias tribos indígenas, se reuniram ao redor de uma fogueira bem próximo do monolito sagrado de Bennet .O chefe da cerimônia trajava branco e os demais trajes típicos com vários amuletos como grandes presas, chapéus, uma carcaça de condor. Toda a celebração foi feita no dialeto Aymará. Uma manifestação exótica, mística, esotérica que marca o início de nossa expedição ao receber a energia cósmica do novo ano.
Nosso objetivo foi “explorar” o perímetro do mais alto lago navegável do Mundo, o Titikaka situado a 3812 metros em relação ao nível do mar, utilizando basicamente três meios de transportes: bicicleta, um caiaque inflável e nossas próprias pernas.Mas o que mais fascina e me motivou a retornar à Bolívia juntamente com o alpinista e guia Fábio Guedes, foi entender o “porque” uma civilização resolveu viver em um lugar árido, alto e inóspito. Com certeza um dos principais itens para a fixação de qualquer civilização é a água, portanto com o Lago Titikaka começamos a montar nosso quebra-cabeça.
O ponto de partida foi La Paz, a capital mais alta do planeta situada a mais de 3700 mts. São dois milhões de habitantes vivendo literalmente “empoleirados” nas encostas e dentro de uma cratera vulcânica extinta. O trânsito caótico, a desorganização do comércio e a arquitetura subdesenvolvida aliada a grande beleza da Cordilheira dos Andes, consolida um cenário único, e ao mesmo tempo capaz de provocar impacto nos nossos olhos. Nos primeiros quilômetros sentimos a dificuldade para pedalar em tão grande altitude devido ao ar rarefeito e ao peso excessivo de nossas bagagens. Apesar de sairmos de La Paz nosso marco inicial foi o dia 21 de Junho em Tiwanaku. Até aqui ainda não havíamos visto o lago sagrado, o que aconteceu na cidadezinha de Guaqui. A paisagem encanta, em primeiro plano o lago de um azul impressionante e em segundo plano, a Cordilheira Real com várias montanhas com mais de 6 mil metros de altura.
Logo deixamos a Bolívia e cruzamos a fronteira para o Peru. Os traços, as vestimentas, habitações continuam as mesmas, quase é imperceptível a mudança de país. A feição do povo é marcante: cabelos bem pretos, olhos levemente “puxados” e a pele bem morena. Também não é por menos, 90% da população é descendente de indígenas, sendo que muitos, além do espanhol falam o idioma indígena Aymará ou Quechua. Passamos por várias cidadezinhas do Titikaka: Zepita, Pomata e antes de chegarmos em Juli uma cena muito curiosa: numa espécie de praia as margens do Titikaka, feira com frutas e legumes, crianças brincando e 2 quadras de vôlei de areia, onde surpreendentemente as jogadoras eram Cholas. As Cholas são descendentes de indígenas que mantém por muitos anos a mesma forma de se vestir: tranças nos seus longos cabelos, vestido encorpado de rendas com anágua e tudo, chapéu típico e quase sempre um pano colorido nas costas, ou para transportar seus filhos, ou algum mantimento. Imaginam as Cholas jogando uma partida de voleibol de areia com toda esta indumentária !!! Paramos nossa pedalada e ficamos apreciando a engraçada e animadíssima partida, com direito a juiz, torcida e tudo. Eu e Fábio quase não acreditamos no cenário: o colorido das frutas, o lago, as montanhas e as Cholas jogando vôlei, será uma imagem difícil de apagar da memória!!!
Puno é a maior cidade situada às margens do Lago Titikaka e é considerada a capital peruana do folclore.Desta vez resolvemos mudar nosso hábito de viagem, pois ao invés de dormimos na nossa barraca ou em algum hotel, dormimos em casas de famílias que vivem em função do lago. Uma boa oportunidade para interagir com os costumes dos nativos. Nós deitamos literalmente sobre o Lago Titikaka, flutuando em uma ilha construída de vegetação chamada de totora: a ilha de Uros. Seu processo de construção mostra como o homem se adequa em qualquer condição – são cerca de 300 famílias morando sobre a totora, em função do turismo ou da caça de aves e pesca.
A ilha flutuante tem em sua base cerca de um metro de raiz de totora e sua superfície é forrada completamente como se fosse um tapete pelos ramos da mesma planta. Há grandes estacas fincadas no fundo do lago e todo um processo de amarração, que assegura que o complexo flutuante não derive ao sabor do vento. Na sua superfície, que pode chegar até a 100 metros quadrados, vivem famílias inteiras, sendo que as casas são dispostas nas laterais e ao centro há um pátio. O curioso é que quando chega um grande barco as ondas são sentidas na ilha toda.
Foi numa dessas casinhas de totora que ficamos duas agradáveis noites. Elas têm cerca de dois de largura por quatro metros de comprimento. O interior é muito simples, as camas não existem, são apenas esteiras ao chão, as roupas ficam todas ou num canto amontoadas ou penduradas no teto. Os poucos pertences que eles têm ficam em uma caixa em outro canto. Banheiro, pelo que percebemos, não existe, e a cozinha fica do lado de fora em uma pequena oca de forma cônica, sendo possível entrar somente abaixado.
A simplicidade e a hospitalidade da família de Miguel, fez com que nos enturmássemos rapidamente, principalmente com a criançada. Não demorou muito nós já estávamos jogando bola com elas (crianças de 5 a 11 anos), um Brasil X Peru em plena Ilha de Uros. Elas se divertiram muito, e apesar da dificuldade de respirar nos 3812 metros do lago eu senti voltar ao tempo, que legal!!! Depois elas nos ensinaram como remar uma canoa construída de totora e fomos armar a rede para garantir o pescado do dia seguinte. Nossas refeições foram baseadas em arroz, batata cozida e é claro, peixes. Mais tarde conversei bastante com o Miguel e ele disse que ali não há roubos, não há poluição, barulho, não existe fome, as pessoas são boas -¨são poucos, mas elementos essenciais para a nossa felicidade, e aqui existe de sobra¨- diz Miguel.
Visitamos também duas outras ilhas, só que estas, ilhas naturais, Taquile e Amantani com forte influência Quéchua e mais festas típicas!!!
Deixamos a cidade de Puno e também a visão do Lago Titikaka. Nossa primeira parada foi num cemitério muito antigo chamado Sillustani, onde há vários túmulos, ou urnas funerárias da civilização de Quolla e Inca. Os ancestrais enterravam os mortos em posição fetal, como sinal que a morte é um novo nascimento.
Talvez exploramos uma região onde nem mesmo a maioria de peruanos e bolivianos conhecem, uma porção bem primitiva ao norte do Titikaka. O asfalto deu lugar à estrada de terra, a língua espanhola quase foi substituída pelo Aymará, o moderno deu lugar ao obsoleto, ao nativo. Pequenos e simples povoados, mas hospitaleiros e de grande beleza.
Cruzamos a fronteira do Peru com a Bolívia, marcado por uma placa praticamente no meio do nada. E foi cruzarmos a fronteira e a estrada piorou acintosamente, sendo que em algumas partes ela parecia nem existir, até que chegamos em Puerto Ancosta, já na Bolívia.
Em Escoma, voltamos à civilização depois de mais de 110 quilômetros de estrada de terra. Passamos por várias outras cidadezinhas: Carabuco, Ancoraimes, Achacachi, até chegarmos em Huarina, onde voltamos a ver os turistas, desde que saímos de Huncane. (pelo mapinha entende-se este trecho).
Chegamos em Copacabana em um domingo, e como manda a tradição da cidade boliviana, é dia de benzer os carros, ônibus, vans e caminhões que chegam de toda parte do país e até do Peru. Eu e Fábio aproveitamos para benzer nossas bicicletas e agradecer os 690 quilômetros percorridos, relativamente sem grandes transtornos. No Calvário, um morro com 4 mil metros de altura, encerramos oficialmente a etapa com nossas bicicletas, que ao apresentaram problema algum, somente um pneu furado.
Era hora de remar para a Ilha do Sol, distante 18 quilômetros de Copacabana e a maior ilha do Titikaka com 37 quilômetros quadrados. Enchemos nosso caiaque inflável com imenso prazer, afinal não é toda hora que podemos remar no mais alto lago do Mundo. Apesar do cansaço a paisagem compensou cada gota de suor. No caminho podemos deslumbrar praias esverdeadas de água doce escondidas nas penínsulas e na própria ilha. O dia estava ensolarado e o lago sem muitas ondas, mas chegamos na ilha por volta da 6 horas da tarde. Foi o sol esconder e começou a tremer do dedão do pé até a ponta da orelha, pois o caiaque é furado e ficamos molhados. Dia seguinte após a remada fomos até as ruínas conhecidas como o Templo do Sol, onde nasceram dois grandes imperadores Incas. Atravessamos a ilha praticamente de ponta a ponta, foram 7 horas ida e volta, mas que compensaram pelo visual. A ruína do Templo do Sol é como sempre muito bem localizada, mostrando o bom gosto das civilizações antigas em escolher suas moradias.
Mais que uma maratona esportiva vivida intensamente durante mais de 30 dias através do esporte interagimos com a cultura de um povo que vive em condições totalmente adversas, um povo no qual os astros, animais, plantas, montanhas, lagunas são irmãos do homem, onde o espaço e tempo (o Pacha) são considerados uma só unidade, um povo que considera a economia da reciprocidade a mais importante.
Nosso desafio de entender o “porque” estas pessoas vivem num lugar como o altiplano andino transformou-se em uma grande lição: é preciso muito pouco para ser feliz quando agregamos valores as pequenas e simples coisas da nossa vida, vivendo em harmonia com a natureza e nossos semelhantes.
A Expedição Desafio do Titikaka teve o patrocínio:
Industrias Nucleares do Brasil
Powerbar
Caloi
Apoio:
Tribo dos Pés
Osklen
Curtlo / Cordura
Prefeitura de Resende
Autor: Guilherme Rocha.
E-mail: [email protected]
Cidade/UF: Peru
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