Os Preparativos
A matéria na Rede Globo nos chamou a atenção para esta nova aventura. A travessia da Serra Fina era uma empreitada para poucos, as dificuldades eram muitas. A distancia a ser percorrida, a água escassa, a trilha fechada, o frio… Depois de mais ou menos dois anos alimentando esta ideia, reunimos informação necessária e agora a viagem tinha data marcada. Fomos obrigados a fazer um bom planejamento, porque nenhum de nós já havia feito esta travessia, contávamos com vários mapas das trilhas e da região e descrições do caminho que conseguimos na internet. Durante a semana nos reunimos na casa de Rafael e Billy para que o pai dos irmãos Treib, seu Ernesto, nos ajudasse com o planejamento e nos desse algumas explicações sobre orientação e cartografia. Seu Ernesto é tenente-coronel e engenheiro cartógrafo do Instituto de Cartografia da Aeronáutica e também nos arrumou mapas da região em diferentes escalas.
Começaríamos na cidade de Passa Quatro – MG e andaríamos por boa parte da Serra da Mantiqueira, passando pela Pedra da Mina, o ponto mais alto de São Paulo com 2.787 m e o Pico dos Três Estados – MG, SP, RJ. Comprei um relógio de segunda mão que marcava a temperatura e altitude e para garantir, comprei um termômetro reserva também. Estávamos no inverno e há menos de duas semanas havia geado no Agulhas Negras, ali pertinho… Não podíamos deixar de registrar o que talvez fosse a temperatura mais baixa que já havíamos sentido na pele. Combinamos ir no carro do Luizão e ligar para o pai de Billy e Rafael encontrar com a gente no Sítio do Pierre ou na Garganta do Registro no fim da Travessia, para que nos levasse de volta a Passa Quatro.
O Capim Amarelo
Saímos as três da madrugada e viajamos durante toda a noite, chegando finalmente por volta de oito da manhã na Fazenda Toca do Lobo em Passa Quatro, o local onde iniciaríamos a caminhada. Chegando lá encontramos mais um grupo que nos acompanhou durante alguns pontos do primeiro dia até o Capim Amarelo, o primeiro grande pico que subimos. Este primeiro dia foi muito cansativo, a maioria de nós não havia dormido bem e a subida é muito íngreme, com o vento muito forte te jogando a toda hora. Subimos tanto que em determinado ponto que paramos achamos que já havíamos chegado e duvidávamos que pudesse ser o alto morro que ainda nos esperava lá adiante. Depois de um lanche prosseguimos andando por uma crista que beirava um precipício de cada lado.
Por muitas vezes caminhamos por este tipo de relevo e acreditamos ser isto que dá o nome a Serra Fina. Chegamos no alto do Capim Amarelo à tarde e discutimos se continuaríamos a andar ainda naquele dia ou se passaríamos a noite ali, achamos melhor ficar por ali, pois estávamos cansados, já que a subida havia sido muito puxada. Neste primeiro dia, tivemos nosso primeiro contato com um vento forte que encontramos nas partes mais altas. Com as pernas já fracas pelo cansaço, por várias vezes, a ventania nos desequilibrou, nos jogando, como que de propósito na direção dos abismos ao lado.
Enquanto decidíamos ficar lá mesmo, o outro grupo chegou e ficamos sabendo que eles não fariam a travessia, ficando no Capim Amarelo mesmo. Rafael ligou para seu pai do celular que estava com sinal e ficou sabendo que a previsão do tempo avisou sobre uma frente fria que vinha do sul e devia chegar ao Rio na terça. Foi mais um motivo para que pensássemos em continuar andando para tentar fazer a travessia em três dias. Resolvemos então ficar ali mesmo e compensar nos demais dias. Montamos a barraca e neste dia dormimos muito. Depois que escureceu, eu e Luizão acordamos para jantar sopas e miojos e vendo as luzes das cidades lá embaixo resolvemos pegar o mapa que seu Ernesto nos arrumou com escala de 1:250.000 e com a ajuda de uma bússola, conseguimos identificar várias cidades ao redor, Passa Quatro, Cruzeiro, Itamonte, Itanhandu e até Caxambu. Durante a noite caiu uma chuva intensa, que durou várias horas. Era a frente fria que passava por nós.
A Pedra da Mina
No dia seguinte acordamos e ainda estava escuro, mas não chovia mais, nos arrumamos e levantamos acampamento. Começamos a andar rumo a Pedra da Mina e logo percebemos o porque das recomendações que eu havia lido sobre usar óculos de proteção. A trilha e muito fechado e quando não estávamos abrindo o capim de anta – um capim, de uns dois metros de altura afiado e pontudo – para poder enxergar a trilha, estávamos lutando com os bambuzinhos que furavam, cortavam, arranhavam, prendia-nos e enroscava nas pernas, derrubando-nos. Durante todo o tempo pegávamos caminhos errados e tínhamos que voltar um pedaço até a última bifurcação. Da metade do dia em diante o tempo ficou nublado e novamente discutimos sobre passar ou não a noite na Pedra da Mina, estávamos um pouco frustrados, pois até então não tínhamos conseguido visualizar o Pico das Agulhas Negras, como dizia o nosso mapa ser possível daquele ponto em diante da travessia, passar a noite lá nos daria a chance de ter uma bela vista caso o tempo abrisse.
Chegamos a base da Pedra da Mina e nos abastecemos com a água quase congelada que ali era abundante. Com os cantis e garrafas cheios, parecíamos que tínhamos chumbo nas costas – eu também levava a filmadora e a corda branca que o pessoal achou no Agulhas e Rafael estreava sua super mochila de 80 litros, talvez por isso também a mais pesada de todas – e começamos a subir a Pedra da Mina, quarenta a sessenta minutos de subida árdua depois chegávamos ao ponto culminante de nossa aventura. Lá em cima, alguns totens, uma bandeira do Brasil e um vento terrível nos recebiam.
O desgaste desta última subida nos convenceu a ficar por ali mesmo. Tratamos logo de nos proteger do frio e do vento com casacos, luvas, toucas e começamos a preparar o acampamento. Havia uma enorme quantidade de pedras lá no cume e fizemos um muro para quebrar um pouco o vento que soprava furiosamente do norte. Depois de tudo arrumado, o céu começou a abrir e nos presenteou com uma vista belíssima das nuvens abaixo de nós, do por do sol e finalmente do Agulhas Negras ao lado do Pico das Prateleiras ao leste. Aquela foi a noite mais fria, apesar de estarmos comprimidos os quatro numa só barraca da mesma capacidade, acordei durante a noite com uma parte da minha cara gelada, já que era a única coisa que não estava coberta pelo capuz do saco de dormir.
Maratona
De manhã, comemos, tiramos fotos de água empoçada e congelada, filmamos o nascer do sol e partimos. Descemos bastante em direção a um vale onde corre o Rio Verde, devia ser umas oito ou nove da manhã e ainda havia trechos do rio congelados e algumas partes do solo estavam cobertas com geada, que faziam um barulho parecido com biscoitos se quebrando quando pisávamos. Caminhamos ora pelas margens do rio, ora pelo próprio rio, tomando cuidado para pisar somente nas pedras e não molhar os pés naquela água congelante. Em determinado ponto tivemos que abandonar o rio e continuar à direita. O tênis de Luizão começava a se abrir e ele aproveitou a parada para tentar repara-lo, enrolando um nylon e fitas adesivas em volta do pé. Nos abastecemos com água e voltamos a andar.
Deste ponto em diante o capim de anta fechou-se e por muito tempo tínhamos que andar quase que só no tato, pois não víamos a trilha abaixo. As quedas e tropeções eram freqüentes. De acordo com o perfil topográfico desta parte da serra, este seria o dia mais apropriado para tentarmos compensar e caminharmos mais, havia muita parte relativamente plana e as subidas eram menos íngremes. Poderíamos, ao invés de acampar no Pico dos Três Estados, continuar e ir direto até o Alto dos Ivos, o último pico que teríamos que subir. Assim fizemos, caminhamos muito, ora pela crista da serra, ora atravessando vales, por campos de capim de anta, por florestas de bambus. Em determinado momento, tivemos que fazer uma parada maior para que eu costurasse o tênis de Luizão, que se soltava freqüentemente. Usando uma ferramenta do meu canivete multiuso, fiz o um reparo provisório com um nylon grosso. Após quarenta minutos parados, voltamos a andar e a costura agüentou até o fim. Em alguns pontos tivemos que fazer uma pequena escala de nível fácil, que não chegou a ser preciso o uso de nenhum equipamento.
Na subida do Pico dos Três Estados foi preciso muito cuidado, pois era muito íngreme e o caminho era um lodo só. Uma queda ali seria muito perigosa. Tivemos que subir devagar e sempre nos agarrando no mato ao lado para auxiliar a subida. Filmamos o marco que indicava a divisa com MG, SP e Rio e admiramos as nuvens lá embaixo que agora começavam a se dissipar um pouco do oeste para leste. Era interessante observar toda a Serra da Mantiqueira e como ela segurava as nuvens ao sul deixando Minas totalmente limpo. Continuamos a andar. O cansaço já abatia os ânimos, quando chegamos na base do Alto dos Ivos, já eram cinco horas da tarde e iam fazer dez horas desde que começamos a andar.
Luizão e Rafael estavam um pouco mais atrás e acho que passou pela cabeça de alguém acampar ali, já que havia um pequeno descampado, mas eu continuei subindo e Billy me seguiu por um caminho que se assemelhava muito à subida do Pico dos Três Estados, íngreme como uma parede e escorregadio como um sabão. Finalmente chegamos e o melhor lugar que achamos para montar o acampamento mal cabia a barraca. Aquela noite foi longa, fizemos a comida no fogareiro dentro da barraca, pois o vento lá fora era muito forte. Reforcei a costura no tênis do Luizão, pois a parte de trás também começava a soltar e esse foi o dia em que dormimos mais tarde. Nove da noite!
A Chegada
Durante a noite, o terreno irregular, o mato e algumas pedras sob a barraca incomodaram muito, nos fazendo acordar com freqüência, com exceção de Rafael que dormiu como uma pedra todas as noites. Acordamos, como sempre, entre quatro e cinco da manhã e umas oito já estávamos partindo. Rafael, que estava sempre ligando para casa para dar notícias, ligou novamente para combinar com seu pai o provável horário que chegaríamos e o local do encontro. Este deveria ser o dia mais tranqüilo, pois seria praticamente só decida, e durante um bom tempo foi assim, já conseguíamos ver o Sítio do Pierre e caminhávamos em direção. Mas em lá no vale abaixo, em certo ponto começamos a subir, não era bem o que esperávamos, mas continuamos, afinal a trilha era bem larga. Mas ao chegar no cume de um monte, o caminho foi sumindo.
Havia apenas uma encosta que não aparentava ser possível descermos. Com uma certa resistência voltamos tudo e lá embaixo descobrimos o caminho certo. Mas a trilha daqui a diante tinha se tornado nossa inimiga. Várias vezes lutávamos contra a vegetação como se ela fosse viva. A mochila de Luizão era muito larga e atrasava muito o seu ritmo, algumas vezes os bambus fechavam completamente o caminho e éramos obrigados a rastejar pelo chão. Eu usava a Commander para abrir um pouco o caminho e Luizão tinha um facão de mato, mas os bambus caídos no chão também se enroscavam nas pernas e minha canela esquerda ficou roxa e inchada de tanta pancada.
Como se não bastasse o bambu, eu, que nesse ponto, ia à frente, tropecei em um arame farpado na altura da canela que cruzava a trilha em vários pontos e não sei como não me cortei. Finalmente, saímos em uma estrada de terra e começamos a descer, algum tempo depois passamos pelo sítio, onde esperávamos comer algo, pois ouvimos falar que lá havia um restaurante. Encontramos tudo fechado e deserto. Continuamos a descer pela estrada e só chegando no asfalto fomos cruzar com uma pessoa depois de três dias isolados. No asfalto conseguimos uma carona num caminhão até a Garganta do Registro, cinco quilômetros acima, onde, sem demorar muito, chegava seu Ernesto para nos resgatar e levar de volta ao carro que ficara em Passa Quatro.
Autor: Paulo Júnior
E-mail: xjunior@brfree.com.br
Site: http://www.trilhaecia.com.br
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